EDUCAÇÃO FÍSICA, CORPO E SAÚDE: UMA REFLEXÃO SOBRE OUTROS “MODOS DE OLHAR”

31/10/2009 10:27

23Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001251.Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 20012 precisou ser“o conjunto das faculdades físicas e mentais,. A força de trabalho é, então, encontrada sob a27aerodance”, “street dance”, “free aero classic”, “lambaeróbica”, “power yoga”,body pump”, “lift training”, “street funk”, “swing afro-baiano”, “step”, “super fit”, “power step”, “spinning”,... a lista é interminável. Como aRev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 200129saúde é uma margem de tolerância às infidelidades do” (p.159). Como o meio social comporta acontecimentos e instituições precárias,redução da margem de tolerância às” (p.160). Contudo, “a doença não é uma variação da dimensão” (p.149).Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 200131Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 20013.33a priori pela organização deixam isto claro.Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 200135grosso modo de duas formas.4, e por isso necessita, cada vez mais, da aproximaçãoRev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 200137Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001, v. 49, p. 363-372, 1995.As classes sociais e o corpo. Rio de Janeiro: Graal, 1989.O normal e o patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1996.Vigiar e Punir : nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1994.O mistério da saúde : o cuidado da saúde e a arte da medicina. Lisboa:The sociology of health promotion : critical analyses of consumption lifestyle andCondição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural.Ética, medicina e técnica. Lisboa: Passagens, 1994.A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Perspectiva, 1997.Dicionário de ciências sociais. Rio de Janeiro: Fundação39O Capital. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1996.De máquinas e seres vivos : autopoiese – a organização doEmoções e linguagem na educação e na política. Belo Horizonte: EditoraEuropean Journal of Epidemiology, v. 13, p. 771-778, 1997.A saúde em estado de choque. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1992.O problema epistemológico da complexidade. Lisboa: Europa-América, 1983.International Journal of Health Services, v. 28, n. 3, p. 389-406, 1998.New England Journal of Medicine, v. 314, p. 605-613, 1986.JAMA, v. 273, n. 5, p. 402-407, 1995.Relatório. Lisboa: Trinova, 1998.Cadernos de Saúde, v. 10, n. 3, p. 387-391, 1994.Uma história da saúde pública. São Paulo: Hucitec/Ed. da Unesp, 1994.Scandinavian Journal of Social Medicine, v. 26, n. 4, p. 272-280, 1998.Que corpo é esse?: novas perspectivas. Rio de Janeiro: Mauad, 1999, p. 132-145.Em pauta: corpo, globalização e novas tecnologias. Rio de Janeiro: Mauad,A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Pioneira, 1997.American Journal of Public, v. 82, n. 6, p. 816-820, 1992.

Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001

 

EDUCAÇÃO FÍSICA, CORPO E SAÚDE:

UMA REFLEXÃO SOBRE OUTROS

“MODOS DE OLHAR”

 

ALEXANDRE PALMA

 

Docente da Universidade Gama Filho e Doutorando em Saúde Pública pela

Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz (ENSP/Fiocruz)

E-mail: alexandrepalma@domain.com.br

 

RESUMO

 

O objetivo deste ensaio é discutir o papel da educação física voltada para saúde, a partir

de reflexões sobre o cenário social em que se encontra o mundo contemporâneo, suas

repercussões sobre o corpo e práticas de intervenção; os conceitos de saúde; e, o

modelo de investigação científica hegemônico. O estudo, então, vai desvelando algumas

“verdades” características de quem opera com o discurso de base quantitativa,

quais sejam: a) a redução do fenômeno a uma determinação biológica; b) a desconsideração

da história coletiva; e, c) a culpabilização do indivíduo frente aos problemas de

saúde e aptidão física. Por fim, propõe-se que a relação educação física-saúde seja abordada

através de novos “olhares”, atentos às incertezas e complexidades do processo.

PALAVRAS-CHAVE: saúde pública; aptidão física e saúde; filosofia da ciência; complexidade.

 

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INTRODUÇÃO

 

Ao se pretender discorrer sobre um objeto socialmente construído, não se

pode deixar de lado o contexto político-econômico pelo qual este mesmo objeto

está inserido. Tratar da saúde é, em última instância, compreender as tramas sociais

que se desenrolam nos projetos e políticas públicas. Parece ingênuo aceitar o

determinante biológico, como razão única, para conferir as análises sobre o processo

saúde-doença. O adoecer humano não deve ser investigado ou tratado

somente sob a forma de uma relação biológica de causa e efeito, tão simples, que

desconsidere outros aspectos relevantes, tais como os contextos socioeconômicos

e históricos.

E isto por quê? Porque, primeiro, as condições sociais têm uma grande

influência sobre este adoecer. Segundo, porque a compreensão mais atual, dentro

do campo da Saúde Pública, do que seja saúde, já vem incorporando estas influências

socioeconômicas. E por fim, porque a própria concepção de “verdade científica”

atravessa uma crise que, em última análise, passa a reivindicar diversas interpretações

para tentar solucionar os problemas que se apresentam.

O objetivo deste ensaio é, então, discutir o papel da educação física voltada

para saúde. Para tanto, será debatido, num primeiro momento, o cenário social

em que se encontra o mundo contemporâneo, bem como suas repercussões

sobre o corpo e práticas de intervenção que se realizam com ele. Posteriormente,

examinar-se-á os conceitos de saúde e os estudos que identificam as relações

entre saúde e condições socioeconômicas. Por último, será questionado o modelo

de investigação científica hegemônico e a possibilidade de entrar em contato

com novos modelos.

 

CORPO DO MERCADO E MERCADO DO CORPO

 

O projeto da “modernidade” vem acompanhado do pensamento iluminista

e da revolução industrial. Neste projeto, é possível identificar, no século XX, a

materialização de um modo de regulamentação capitalista, cujo regime de acumulação

assume a forma de normas, leis, hábitos etc., que garantem a unidade do

processo. De modo resumido, pode-se destacar alguns pontos básicos deste processo,

cuja configuração consiste em estabelecer uma complexa interação entre os

comportamentos individualizados e o esquema de reprodução, de tal forma que

mantenha o regime de acumulação funcionando ao menos por um dado período

de tempo (Harvey, 1996).

Num primeiro momento, ao final do século XIX e início do século XX,

Taylor, através de seus “Princípios da Administração Científica”, sugeriu uma nova

 

Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001

 

organização industrial, onde a produtividade era intensamente aumentada através

da decomposição do processo de trabalho, a partir de rigorosos padrões de tempo

e do estudos dos movimentos das tarefas.

Avançando mais um pouco, o capitalismo fez emergir, na década de 1910,

o “fordismo”, de Henry Ford, que se concretizou pela produção e consumo de

massa. Em sua fábrica de automóveis, Ford introduziu a linha de montagem, pela

qual significou um grande avanço, do ponto de vista da produtividade, no controle

e gerência do trabalho, bem como do acúmulo de capital. É interessante ressaltar

que, considerando que o “fordismo” não produziu maiores inovações nas ferramentas

e máquinas empregadas, a realidade do aumento da produtividade ocorreu

pela violenta intensificação do ritmo de trabalho. Ao mesmo tempo, a produção

em massa significou uma padronização dos produtos e do consumo.

A orientação deste novo processo de trabalho ultrapassou os muros da

fábrica e criou novas necessidades, novos desejos. O inevitável aumento dos salários

não foi sem neutralidade, significou modificar os padrões de consumo dos

trabalhadores e atrelá-los aos outros setores produtivos. Sem dúvida, é o capitalismo

exigindo que os capitalistas tornem-se atores do processo. Assim, o capitalista

produz o produto e o consumo, através da produção do desejo

Os contrastes entre as práticas político-econômicas do período de expansão

do pós-guerra e dos dias atuais sinalizam para uma passagem do “fordismo”

para um regime que pode ser denominado de “acumulação flexível”. De fato, o

antigo regime “fordista” sofreu um abalo com a crise do petróleo, com a incapacidade

de lidar com o excedente não utilizável, além das condições de intensificação

da competição do mercado. Este momento histórico, revelou uma série de transformações

nos valores sociais e favoreceu algumas características, tais como: a

maior vulnerabilidade dos grupos desprivilegiados; o aumento da subcontratação,

do trabalho temporário e do desemprego; atendimento rápido à necessidade do

mercado; maior atenção às modas fugazes, com a criação de artifícios de indução

de desejos e novos produtos; descompromisso com o bem-estar social, grande

competitividade entre os indivíduos, internacionalização da economia, entre outros

(Harvey, 1996).

 

1. A “necessidade” está sempre associada a um objeto específico visando à satisfação, enquanto o “desejo”

se relaciona com “fantasmas” e não com objetos reais. Assim, o indivíduo acredita que aquele

desejo (aquele impulso) restabelecerá uma satisfação real, tal qual a necessidade (de alimentar-se,

respirar, fazer amor etc.), porém, aquilo que se imputa como objeto desejante não trará a satisfação

quando alcançado, pois ele é apenas idealizado como tal. O objeto, então, perderá relevância e o

impulso desejante continuará, agora, refletido sobre outro objeto. Deste modo, o capitalismo marca

seu modo de operar. Ao criar novos produtos, novas marcas, cria junto novos desejos, que por fim

são intermináveis.

 

26

 

Diante disto, a tarefa imediata é esboçar uma compreensão de como o “corpo”

foi ou é utilizado dentro deste cenário, ou seja, qual é o arranjo que se pode

perceber de um “mercado do corpo”. O corpo não se manifesta apenas como veículo

da aparência, mas, antes, como lugar de sedução, fascínio, criação de pactos estéticos

que engendram o amor, o prazer, etc. Daí que a imagem corporal resulta tanto

da experiência motora, quanto, e talvez sobretudo, da sensibilidade sexual motivada

pelos desejos, prazeres e sonhos. Deste modo, não se pode imputar, totalmente, ao

mercado as disciplinas e obediências cegas dos corpos. Além disto, a cultura de consumo,

mesmo que discutível, poderia ser compreendida como uma possibilidade de

oferecer um maior número de opções. Por outro lado, na complexa rede de sentidos

que mobilizam o corpo a alguns determinados hábitos, não se pode descartar a

força da sociedade de consumo que difunde fantasias mirabolantes. Portanto, não

convém uma visão maniqueísta para lidar com o assunto.

A intervenção da educação física, como não poderia deixar de ser, ajusta-se

aos cenários socioeconômicos. Neste sentido, Max Weber (1997) ao escrever

sobre “a ética protestante e o espírito do capitalismo”, desvendou um processo de

“racionalização”, em meados do século XIX, que tem em seu bojo uma rija frugalidade

ao invés da anterior atitude de lazer. O autor aponta que a concepção

puritana de vocação influiu no estilo de vida capitalista e o comportamento ascético

orientava todo o seu vigor contra a atitude de desfrutar espontaneamente a vida e

tudo o que ela tem para oferecer. Por esta razão, segundo Weber (1997), os

puritanos sustentavam que o esporte tinha que ser útil a uma finalidade racional, à

eficiência do corpo, mas não como meio de expressão espontânea ou diversão.

Mas foi, sem dúvida, Michel Foucault (1994) que tornou bem conhecido

como o corpo foi objeto de investimentos de modo tão imperioso e urgente, já a

partir do século XVIII. Ao comentar sobre a disciplina corporal e a “anatomia política”,

o autor comenta:

 

a disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta

as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas

forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo;

faz dele por uma lado uma “aptidão”, uma “capacidade” que ela procura aumentar (p.127).

 

Ora, como mercadoria, como “objeto”, a força de trabalho

aperfeiçoada, disciplinada, tornada apta à produção, ao aumento da produtividade.

 

2. Para Marx (1996, p.187), força de trabalho significa

existentes no corpo e na personalidade viva de um ser humano, as quais ele põe em ação toda vez

que produz valores de uso de qualquer espécie”

forma de mercadoria quando é oferecida ou vendida como tal por seu próprio possuidor.

 

Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001

 

Por esta razão, foi e ainda é interessante o desenvolvimento da aptidão física nas

empresas, embora as ginásticas no trabalho, ditas “preparatórias”, “compensatórias”,

de “pausa” etc., sempre estivessem acompanhadas do discurso da saúde. De

fato, existe uma aceitação de que elas podem combater as lesões por esforços

repetitivos, prevenir contra as doenças cardiovasculares, dificultar a instalação de

um estado de fadiga ou estresse, entre outros.

Contudo, longe dos “muros das fábricas” nem sempre a educação física

conseguia chegar. Neste sentido, é interessante ressaltar, o comentário da socióloga

Daizy Stepansky (1999, p. 140):

 

A estratificação faz transbordar para os espaços de reprodução (a vida social propriamente

dita) as diferentes posições do processo produtivo, o que se traduz em grandes diferenças

nas condições de vida e nos acessos aos benefícios. Em aparente contradição com os princípios

de igualdade das modernas democracias ocidentais, os segmentos que mais desgastam

o corpo no processo de trabalho são os que têm menores condições efetivas de compensação.

 

Outro aspecto é que, se na era industrial o corpo era disciplinado como

instrumento de produção, na sociedade pós-industrial percebe-se que o corpo do

cidadão, consumidor, é atravessado por uma incessante produção de serviços e

desejos. O corpo é hoje, ao mesmo tempo, “consumidor” e “objeto de consumo”.

As estratégias de “venda”, como não poderiam deixar de ser, perpassam pela

criação de novos produtos, de novas “necessidades” (Glassner, 1995). É deste

modo, então, que dois pontos chamam a atenção: primeiro, o surgimento de

técnicas de treinamento físico variadas para alcançar o mesmo objetivo, sem contudo,

haver diferenças significativas nos resultados; e, segundo, que embora os

discursos empregados utilizem a “saúde” como aspecto legitimador, a utilização

destas técnicas têm uma preocupação maior com a estética corporal.

A ginástica aeróbia, a ginástica localizada, a musculação e o treino aeróbio na

bicicleta ergométrica ou na esteira rolante contam, agora, com a companhia da

“aeroboxe”, “

circuit

sociedade contemporânea tem sido marcada por esta grande produção de serviços

e produtos, cabe questionar se estas estratégias se desenvolvem para melhor

qualidade da educação física ou são, apenas, estratégias de mercado?

O mercado do corpo é realmente grande e, parece, em plena expansão.

Além da atividade física pode-se, ainda, observar a grande quantidade de cirurgias

plásticas realizadas. Nos Estados Unidos, no mercado da perda de peso gasta-se

em torno de US$ 10 bilhões anualmente e as cirurgias plásticas duplicaram entre

 

28

 

1981 e 1987 e movimentam atualmente US$ 5 bilhões ao ano (Glassner, 1995).

Há, ainda, outros tipos de tratamentos, como da “enzima telomerase” para ajudar

a rejuvenescer e/ou retardar o envelhecimento ou da “manipulação genética”, que

poderia conferir ao ser humano a capacidade de determinar as características básicas

do “ser” quando ainda está por gerar-se, tais como: a cor da pele, dos olhos, do

cabelo; os traços; a inteligência etc. Recentemente a imprensa noticiou que estudos

neste sentido poderiam levar os seres humanos a idades de 120, 150 anos.

A imortalidade e a perfeição têm sido grandes desafios para a humanidade.

Nízia Villaça (1999), aponta para os reais interesses de ser “imortal” ou “perfeito”.

Ser imortal parece só fazer sentido num mundo onde todos são mortais, é fugir da

norma, não repetir o comum a todos os seres. Por outro lado, se todos fossem

imortais, a imortalidade ficaria monótona, se lamentaria a aventura da vida, e o

desconhecimento da morte talvez provocasse o desejo de conhecê-la.

O filósofo alemão Hans Jonas (1994), ao discorrer sobre a ética, a medicina

e a técnica, anuncia que esta nova ordem (biogenética) de atividade humana exige

uma ética correspondente. Segundo o autor, se certos avanços científicos proporcionam

esperança de prolongar, ou mesmo, aumentar indefinidamente a expectativa

de vida, a morte surgiria, não como fatalidade própria da natureza, mas como disfunção

orgânica evitável, ou ao menos tratável ou adiável. Contudo, a questão para Jonas

(1994) é: “até que ponto é isto desejável? Para o indivíduo e para a espécie?”.

Ao prosseguir o autor ainda reflete sobre quem poderia candidatar-se às

benesses desta nova possibilidade. Pessoas com qualidades e méritos especiais?

Aqueles que poderiam pagar? Toda humanidade? Decerto, este último configurase

como a única ação realmente justa, mas, em contrapartida, traria consigo um

desagradável preço. Ter-se-ia, por exemplo, alimentos para todos, ou mesmo,

emprego? A idade avançada poderia acarretar, então, uma proporcional redução

do afluxo de novas vidas, pois a abolição da morte acabaria por levar a uma necessária

abolição da procriação. A espécie humana teria reservado para si um mundo

sem juventude.

 

ATIVIDADE FÍSICA E SAÚDE PÚBLICA

 

Muito tem sido dito a respeito dos benefícios que a atividade física poderia

provocar sobre a saúde. Um sem número de estudos mostram que é possível

reduzir a incidência de doenças ou aumentar a expectativa de vida, em populações

que praticam regularmente exercícios físicos (Paffenbarger et al., 1986 e Pate et al.,

1995). Mas sob que prisma se dá a compreensão de saúde? O que é saúde para

estes autores? Ao analisar o conteúdo destes textos é possível perceber que o

 

Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001

 

entendimento de saúde entre eles não difere muito. Isto não é surpreendente,

uma vez que o que rege a “visão de mundo” destes pesquisadores é um “paradigma”,

que, em última instância, é aquilo que os membros de uma comunidade

científica partilham (Kuhn, 1997).

Um primeiro conceito de saúde, pode ser descrito como a ausência de

doença. Embora rechaçado, este entendimento parece permanecer no imaginário

não só das pessoas comuns (senso comum), mas também, dos profissionais, como

se verá adiante. Um segundo conceito, da Organização Mundial da Saúde (OMS),

é: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência

de doença ou enfermidade” (Lewis, 1986, p.1100). Esta definição, apesar de

parecer uma evolução, ainda não ajuda muito, já que se esbarra com uma dificuldade

de se definir o que é “completo bem-estar”.

É deste modo, então, que os autores citados anteriormente mostram-se

ligados a uma visão ainda estreita de saúde. O que se percebe, então, é que ao se

tratar de saúde os autores o fazem considerando dois pontos essenciais: a) a ausência

de doenças e, b) o viés biológico na determinação destas doenças. Esta

compreensão leva a alguns desdobramentos. Primeiro, que o indivíduo que está

doente não pode ser sadio. Segundo, que a doença pode ser evitada de modo

determinista-biológico (basta acabar com a causa). Um terceiro refere-se ao fato

de que a doença pode ser evitada, principalmente, pelo próprio indivíduo (processo

de “culpabilização”). Um quarto, mas não menos importante, é a falta de atenção

ao contexto socioeconômico.

Um certo rompimento com estes enfoques pode ser observado considerando

a saúde, de imediato, como um direito à cidadania. Minayo (1992, p.10)

apresenta um conceito dentro desta perspectiva: “Saúde é o resultante das condições

de alimentação, habitação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego,

lazer, liberdade, acesso e posse da terra e acesso aos serviços de saúde. É,

assim, antes de tudo, o resultado das formas de organização social da produção, as

quais podem gerar grandes desigualdades nos níveis de vida”.

Dentro de um ponto de vista semelhante, seguindo os ensinamentos de

Canguilhem (1995), a “

meio

esta infidelidade é exatamente sua história, seu devir. Assim, a saúde poderia

se caracterizar por ser a possibilidade de agir e reagir, de adoecer e se recuperar.

A doença, ao contrário, consistiria na “

infidelidades do meio

de saúde; ela é uma nova dimensão de vida. [...] A doença é ao mesmo tempo

privação e reformulação

 

30

 

Contudo, conceituar “saúde” não é tarefa fácil. Os conceitos aparecem frouxos,

não tão bem delimitados. Hans-Georg Gadamer (1997), por exemplo, longe

de tentar defini-la, tenta compreendê-la. E a compreende como um mistério. Este

filósofo comenta que a doença está relacionada à história do indivíduo e deste com

a sociedade, ela é uma perturbação experimentada pelo indivíduo, uma exceção

que o afasta das suas relações vitais em que ele estava habitualmente vivendo. Esta

experiência, da doença, relaciona-se ao estado anterior da saúde, que estando

“esquecida” ou não chamando a atenção impõe o estabelecimento de valores

padronizados. Ora, a doença, então, não pode existir sem a saúde. Porém, o mais

interessante é que o autor lembra que a saúde não é algo realizado pelo médico,

mas, antes, a condição natural do ser.

Embora, a conceituação de Saúde Pública esteja longe de entrar em consenso

na literatura, observa-se alguns pontos de interseção: a) a agregação do

nível populacional; b) a importância da interdisciplinaridade nas tomadas de decisões

e nos estudos sobre a saúde; e, c) o “modo de olhar”, que reside no fato de

que este se expressa enquanto atividade social e governamental relevante, ou seja,

onde há em curso, ou deveria haver, uma política pública de intervenção.

Sem dúvida, apreciar o campo da Saúde Pública deveria requerer um pensamento

além do biológico. Os problemas de saúde existentes, atualmente, em

todo mundo estão relacionados às desigualdades sociais, aos problemas fundamentais

da distribuição da riqueza. Um trabalho clássico que aponta neste sentido

é o de Luc Boltanski (1989). A pobreza, a saúde e a educação, assim, se interrelacionam

numa rede de interações, onde os baixos salários, a má educação, a

dieta pobre, a habitação e as condições de higiene insalubres e o vestuário inadequado

se influenciam mutuamente (Navarro, 1998; Rosen, 1994 e Prata, 1994). A

observação dos dados do Relatório do Desenvolvimento Humano pode indicar

como as desigualdades socioeconômicas se unem às condições de saúde e educação.

A tabela 1 apresenta alguns destes dados.

Vários estudos epidemiológicos têm apontado para os resultados desiguais

da saúde. Dentro desta perspectiva pode-se encontrar, também, o trabalho de

Rosengren, Orth-Gomer e Wilhelmsen (1998) que mostra, a partir dos dados de

saúde dos trabalhadores suecos, que a mortalidade se dá três vezes maior nos

trabalhadores não-qualificados do que nos gerentes e altos funcionários. Verificaram,

também, que as baixas classes ocupacionais associaram-se com a alta prevalência

do fumo, baixa integração social, baixo suporte emocional, bem como, uma

baixa capacidade de percepção da própria saúde. Todavia, não foi encontrada associação

das classes mais baixas com a pressão arterial, razão cintura-quadril,

triglicerídeos e colesterol.

 

Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001

 

TABELA 1 – A IMPORTÂNCIA DOS FATORES ECONÔMICOS

E SOCIAIS NA SAÚDE E EDUCAÇÃO DA POPULAÇÃO

 

Fonte de dados: Relatório do Desenvolvimento Humano 1998 (PNUD, 1998)

* incluindo o Brasil

 

Em outro estudo, Winkleby, Jatulis, Frank e Fortmann (1992), ao utilizarem

o “nível educacional”, o “salário” e a “ocupação profissional” como determinantes

do estado socioeconômico para examinar sua associação com alguns fatores de

risco cardíaco (fumo, pressão arterial, colesterol total e HDL-colesterol), encontraram

que, em geral, os indivíduos de baixo “nível educacional” tendem a exibir

elevada prevalência aos fatores de risco, sendo mais evidentes quando se observa

as associações com o uso do cigarro, em ambos os sexos e com o colesterol total

e HDL-colesterol, nas mulheres. No caso das “ocupações”, homens e mulheres

em cargos importantes de gerência e administração exibiram menores níveis de

uso de cigarros, enquanto executivos do sexo masculino apresentam menores

valores de pressão arterial.

Processo semelhante se dá com a prática de atividade física. Assim, Bennett

(1995) encontrou uma forte associação entre o baixo nível educacional e o

sedentarismo. Mensink, Loose e Oomen (1997) também observaram a associação

do baixo estado socioeconômico e do tipo de ocupação profissional com o

sedentarismo. Boltanski (1989) também fez um extenso estudo sobre o uso do

corpo e a prática desportiva e percebeu que esta diminui nas classes menos

favorecidas.

Como se pode falar de Saúde Pública na educação física, então, se: a) não

há uma política pública instituída, b) somente alguns poucos podem ser beneficiados,

c) a intervenção localiza-se na realização de uma única ação (praticar atividade

física), esquecendo-se de diversos outros fatores (sociais, econômicos, culturais,

educacionais etc.)?

Por fim, cabe ainda considerar qual a relação da educação física voltada à

saúde com a “autonomia” do sujeito. É comum, encontrar, como diretriz desta

 

Países

industrializados

Países em

desenvolvimento*

Brasil

Número de países 50 125 –

População estimada (milhões) 1.233,1 4.394,0 159,0

PIB per capita (dólares): 20% + pobres / 20% + ricos 4.811/32.273 768 / 6.195 578/18.563

Taxa de analfabetismo em adultos (%) 1,4 29,6 16,7

Expectativa de vida ao nascer (em anos) 74,2 62,2 66,6

Taxa de mortalidade infantil (por 1.000 natos-vivos) 13 65 44

Oferta diária de calorias per capita 3.157 2.572 2.824

Médicos (por 100.000 habitantes) 287 76 134

Despesa pública na saúde (em % do PIB) 9,4 2,0 2,8

 

32

 

vertente da educação física, um discurso que considera que a atividade física regular

poderia contribuir para o projeto de autonomia do indivíduo, pois ele estaria

mais apto para realizar suas tarefas do dia-a-dia. É interessante perceber como

escapa aos professores e pesquisadores o que significa “autonomia”. Esta “autonomia”,

por vezes, ocorre ao custo de uma dependência ao saber profissional, da

motivação provocada pelo professor e da perda da liberdade de escolha. Talvez, a

partir daí, se possa encontrar algumas pistas para a falta de adesão e permanência

à prática de exercícios na maioria das pessoas.

Quando Gadamer (1997) comenta sobre a arte da medicina, diz que esta

atinge a perfeição quando “se dobra sobre si mesma e deixa o outro em liberdade”

e que a dificuldade em submeter-se à autoridade do médico pode evidenciar um

certo grau de inteligência. Ora, o que o autor aponta, aqui, é a necessidade de se

evitar que o paciente dependa do médico. A aceitação da autoridade, para o autônomo,

deveria ser sempre condicional, na medida em que coopera enquanto

conserva seu direito particular de julgamento. Não se deve negar ou mascarar as

emoções, mas reconhecer e fazer respeitar seus próprios sentimentos, potencialidades

e limitações. Parece, contudo, que os valores (no caso da educação física,

normalmente biológicos) têm sido mais importantes do que os direitos dos indivíduos.

Exercitar-se para autonomia deveria passar pelo entendimento de liberá-lo

da autoridade do professor. Seria orientar o aluno para que dispusesse de conhecimento

e possibilidades para realizar seu exercício preferido dentro de parâmetros

fisiológicos adequados

Tornar-se apto ou “autônomo”, é tornar-se apto ou com autonomia para

quê? Ou para quem? Para que o trabalhador possa realizar mais trabalho sem

queda de produtividade, sem doenças, sem absenteísmo ou para o idoso não se

tornar um fardo. Para Maturana e Varela (1997), o conceito de “aptidão” teve um

impacto cultural a partir do desenvolvimento da idéia darwiniana de evolução.

Numa sociedade competitiva, marcada pela discriminação social, subordinação

político-econômica e exploração do homem, a pseudo-explicação científica pôde

transcender ao sociológico para justificar o destino dos indivíduos e enraizar-se no

imaginário social. De fato, a noção do “apto” perpassa pela exclusão do “nãoapto”.

 

3. Não à toa, o comportamento de preparação física é denominado “condicionamento físico”. A

expressão incorpora o mesmo sentido empregado na psicologia experimental, tornada notória

após experimentos com animais, e parece se configurar como uma possibilidade de cerceamento

à criatividade e autonomia.

 

Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001

 

Não se trata, pois, de se curvar à autoridade idealizada daqueles que se

vangloriam da “última palavra” científica, mas tampouco conceber-se completo,

onipotente, auto-suficiente ou independente. A relação médico-paciente, neste

caso, apresenta-se interessante. O paciente, decerto, tem um conhecimento sobre

sua doença, mas busca auxílio a um outro saber, um especialista-médico que,

como um consultor, trabalha pela cura do sujeito. A relação pára após a cura,

embora, não necessariamente termine aí, uma vez que o paciente voltará para

outras consultas. A educação física não se espelha neste movimento. Talvez, porque

realmente não esteja preocupada com a autonomia do sujeito ou criação de

hábitos.

 

TUDO É DITO POR UM OBSERVADOR

 

Thomas Kuhn (1997) levantou a noção de “paradigma” para apontar tudo

aquilo que os membros de uma “comunidade científica” partilham. Para este autor,

os praticantes de uma especialidade científica foram submetidos a uma iniciação

profissional e educação similares e, por isso, constituem uma “comunidade científica”.

Enquanto a disciplina encontrar-se em total desacordo e em grande debate

sobre a interpretação dos problemas, diz-se que está num momento correspondente

à “pré-ciência”; em contrapartida, quando ocorre o reconhecimento de

uma única via para o genuíno conhecimento compreende-se a “ciência normal” e

é aí que a “comunidade científica”, em função do paradigma partilhado, resolve os

problemas científicos.

A compreensão de certos conceitos ou a intervenção em determinadas

direções, de um modo mais geral, não difere muito entre os profissionais. Isto não

é surpreendente, uma vez que o que rege a “visão de mundo” destes profissionais

é um “paradigma”, que, em último caso, é aquilo que os membros de uma comunidade

científica partilham (Kuhn, 1997).

Por esta razão, o envio de trabalhos para exames em revistas ou congressos

científicos está suscetível à rejeição, pelo simples fato de não pertencerem ao paradigma

hegemônico. Ao analisar os anais de um importante congresso sobre atividade

física e saúde realizado no Brasil, em 1998, percebe-se como a saúde está

amplamente marcada pelo viés biológico (Tabela 2).

Talvez, se possa argumentar e justificar muito bem esta característica e concordar

que a saúde tenha grande associação com o “biológico”. O que não se

aceita é o total (ou quase) desprezo pelos outros saberes. As conferências, cursos

e mesas preparados

 

34

 

TABELA 2 – QUANTIDADE DOS VÁRIOS TIPOS DE COMUNICAÇÕES

APRESENTADAS EM CONGRESSO REALIZADO NO BRASIL EM 1998,

SOB A TEMÁTICA DA ATIVIDADE FÍSICA E SAÚDE

 

Fonte: Anais do XXI Simpósio Internacional de Ciências do Esporte

 

O médico e biólogo Humberto Maturana (1998) alerta que o fenômeno de

competição é do âmbito cultural humano e implica a negação do outro. Ora, mas

todo argumento, sem erro lógico, é estritamente racional para aqueles que aceitam

os pressupostos fundamentais em que este se baseia. Todavia, em toda competição,

a vitória se constitui no fracasso do outro. Por outro lado, fato é, que viés nenhum

está intrinsecamente equivocado por operar num domínio de realidade distinto daquele

que é hegemônico. O autor, então, aponta para duas atitudes frente à capacidade

de observar e conhecer: a) a “objetividade-sem-parênteses”, cujo caminho

explicativo direciona o observador a não se perguntar pela origem de suas habilidades

cognitivas e aceitá-las como suas propriedades constitutivas. O que é válido, é

porque é objetivo, pode ser medido, é a “realidade”. Para este caminho explicativo,

o que não está com o indivíduo, está contra ele e, fatalmente, contra a “realidade”,

os dados, as medições; e, b) a “objetividade-entre-parênteses”, a qual compreende

que não se pode pretender realizar uma referência a uma realidade independente

de si próprio. Deste modo, o observador se faz ciente disto na intenção de entender

que esta referência à realidade depende do observador para validar seu explicar.

Em outras palavras, tudo é dito por um observador.

“No caminho explicativo da ‘objetividade-entre-parênteses’ não há verdade

absoluta nem verdade relativa, mas muitas verdades diferentes em muitos domínios

distintos” (Maturana, 1998, p. 48). Para o autor, então, há muitos domínios

explicativos, igualmente legítimos, onde cada um deles constitui-se como explicação

da experiência e, portanto, há de ser considerado um domínio da realidade.

Se um pesquisador diz que quer explicar um fenômeno, o que ele quer explicar é

a experiência de observar este fenômeno. A negação do outro neste “caminho” é

uma negação responsável. Ela se dá dentro de “divergências lógicas”, que surgem

quando um dos atores comete um erro na aplicação das coerências operacionais

que definem seu domínio racional, mas não dentro de “divergências ideológicas”,

as quais aparecem quando os domínios racionais são distintos e não há comunicação,

não há diálogo entre os atores (Maturana, 1998).

 

Tipo de comunicação Viés biológico Viés socioeconômico Viés psicológico Outros

Conferências 100 % (n=6) 0 % 0 % 0 %

Cursos 95 % (n=19) 0 % 5 % (n=1) 0 %

Mesas redondas 83,3 % (n=10) 16,7 % (n=2) 0 % 0 %

Temas livres 91,26 % (n=188) 2,91 % (n=6) 1,94 % (n=4) 3,88 % (n=8)

 

Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001

 

Uma das tarefas fundamentais da ciência atual é, então, reformular seus

“olhares” frente a estes novos problemas, reconhecendo a incerteza e a complexidade

que deverão guiar o conhecimento científico. O filósofo francês Edgar Morin

(1983), ao tratar do problema epistemológico da complexidade, comenta o quão

incerto e frágil é a “aventura” de tentar compreender os fenômenos nos moldes

clássicos. E avança tentando mostrar que o problema não está, necessariamente,

em que cada um perca sua própria competência especializada, mas, antes, em que

não desenvolva, suficientemente, a articulação com outras competências que, ligadas

em cadeia, engendram o “anel epistêmico” do novo conhecimento. A complexidade

é para Morin, neste sentido, interpretada

Primeiro, como um tecido de constituintes heterogêneos associados e, segundo,

como o tecido de acontecimentos, ações, interações, determinações e acasos que

constituem o mundo fenomenal em relação com os traços inquietantes da confusão,

da contradição, da desordem, da ambigüidade, da incerteza etc.

O que se está anunciando é que a ciência determinista já não pode ter tanta

certeza de suas descobertas

de outras ciências e/ou formas de conhecimento (filosofia, psicanálise, conhecimento

popular etc.). A “complexidade”, muito resumidamente, não se trata de um

método novo, mas sim do reconhecimento das dificuldades e incertezas que estão

por trás de qualquer método de investigação científica (Morin, 1983).

É dentro deste contexto, então, que se deve repensar o processo saúdedoença

e o papel da intervenção pela educação física. Não se pode mais acreditar

num modelo determinista biológico, nem tampouco, como lembra Navarro (1998),

com outro modelo determinista, do tipo “se as condições socioeconômicas são

baixas, a prevalência de doenças será alta”. Além de alguns achados vistos anteriormente

apontarem em outra direção, é preciso perceber que a realidade não é

linear, mas antes dialética. Isto representa que o foco de atenção deve ser desviado

do indivíduo para o coletivo. Não são os fatores de risco individuais que são as

potentes causas de doenças, mas o impacto de inúmeras variáveis, tais como salários,

educação, moradia, ocupação etc., que, combinadas entre si, com os fatores

de risco biológicos e com as condições que geram estes mesmos fatores de risco,

podem engendrar o processo de adoecimento (Navarro, 1998).

Considerar, então, um foco individual pode ser insuficiente, já que a sociedade

é mais que um agregado de indivíduos. É preciso reconhecer que a com-

 

4. Aqui cabe recorrer, por exemplo, ao princípio da indeterminação postulado por Heisenberg, que se

refere, basicamente, aos problemas de determinação da velocidade da luz.

 

36

 

preensão da sociedade representa um grande instrumento para entender o processo

saúde – doença, pois ao analisar como se dão as relações de exploração,

dominação e reprodução, talvez seja possível compreender melhor a saúde dos

indivíduos. Por fim, ao considerar que a prática da atividade física gera saúde a seus

participantes, desconsidera-se que não se sabe ao certo se isto realmente ocorre

ou se é a prática de atividade física que é procurada por indivíduos já saudáveis.

Neste sentido, esbarra-se, novamente, com um problema complexo.

 

À GUISA DE CONCLUSÃO

 

Este ensaio teve como propósito discutir alguns pontos relevantes do papel

da educação física relacionada à saúde. Levantá-los não é tarefa fácil, até porque

parecem ser muitos. Por isso, longe de encerrar qualquer questão e consciente do

possível “esquecimento”, destacam-se alguns pontos que merecem maiores cuidados

e reflexões.

Num primeiro momento, procurou-se discutir como nossas ações estão

dependentes de do contexto histórico-social. A modulação dos corpos, a exaltação

à estética, a ética do rendimento, entre outros são criações de necessidades que

se coadunam com o movimento social vigente. Foucault (1994) reconheceu nas

sociedades disciplinares o exercício do poder disciplinar sobre os corpos e sua

técnica de confinamento (hospitais, prisões, escola, fábricas etc.). Este próprio autor,

no entanto, comentou que esta sociedade estava sendo deixada para trás,

emergindo, por outro lado, as sociedades de controle, onde não funcionam mais

o confinamento, a disciplina, mas o controle contínuo e a comunicação instantânea.

O que está sendo implantado são novos tipos de sanções, de educação, de

tratamento. O filósofo Gilles Deleuze (1996) lembra que nas sociedades de disciplina

não se parava de recomeçar, enquanto nas sociedades de controle nunca se

termina nada. E aí o “marketing” é o principal instrumento de controle social. As

estratégias sobre o corpo necessitam de constantes mudanças, o “produto” precisa

ser alterado, mais do que a fisiologia possa recomendar.

Um segundo aspecto abordado refere-se às condições socioeconômicas e

suas relações com a saúde. Hoje já se sabe que grupos sociais com baixos níveis

socioeconômicos ficam mais vulneráveis às doenças, e, é importante ressaltar, não

somente àquelas consideradas infecto-contagiosas, mas, também, nas chamadas

doenças crônicas. A atividade física, também, sofre influências deste aspecto. Como,

então, a educação física pode se preocupar com políticas públicas de saúde desconsiderando

tal questão? Outro problema pode ser observado na pregação da

atividade física como fonte de “saúde”. Ora, o entendimento do que é saúde tem

 

Rev. Bras. Cienc. Esporte, v. 22, n. 2, p. 23-39, jan. 2001

 

sido por demais reduzido entre os profissionais de educação física. Um modelo

norte-americano vem sendo importado, através da literatura, como referência da

questão. Porém esquecem, ou não querem reconhecer, que, enquanto o Canadá

aparece como o primeiro país em desenvolvimento humano e os Estados Unidos

em quarto, o Brasil apresenta-se no sexagésimo segundo (PNUD, 1998). Compreender

o processo saúde-doença requer, então, maior complexidade nas análises.

O terceiro ponto faz referência às questões epistemológicas. Os estudos da

complexidade, teoria do caos ou ciência pós-normal, ou mesmo, do princípio da

indeterminação de Heisenberg poderiam e deveriam ser considerados quando se

examina as questões anteriores. Ist